GLAUCO DINIZ DUARTE Quebec, no Canadá, investe em hidrelétricas e foca fornecimento de energia aos EUA
Ao norte do golfo de Saint Lawrence, a província canadense de Quebec está terminando a construção de quatro polêmicas represas, símbolos de sua ambição de inundar a região nordeste dos Estados Unidos de eletricidade “limpa”.
O rio Romaine, que percorre mais de 300 quilômetros em um curso sinuoso pelas terras selvagens da área nordeste de Quebec, em uma região habitada por povos indígenas, está a ponto de ser definitivamente domesticado. Um exército de 800 operários está construindo do zero a quarta e última central elétrica dessa obra faraônica iniciada em 2009.
Caminhões basculantes de 50 toneladas, perfuratrizes gigantes e escavadoras: uma constelação de luzes e de sirenes ilumina e agita a noite.
As equipes de trabalho estão batalhando em duas frentes. Por um lado, elas precisam terminar de escavar uma montanha inteira, para abrir espaço à construção da central que produzirá eletricidade. Por outro lado, é preciso construir uma barragem com 500 metros de comprimento e 90 metros de altura, que deve gerar pressão de água adequada para acionar as turbinas hidrelétricas.
Em um período no qual o aquecimento global está se acelerando, o novo governo da província de Quebec quer apostar nesse recurso para se converter em fornecedor de energia limpa às províncias canadenses e aos Estados Unidos. A província francófona vive uma situação de superávit de energia, mesmo sem levar em conta o potencial de geração das quatro represas na região de La Romaine.
Os perigos da construção
A construção da represa Romaine-4 ocupa uma área de diversos quilômetros, na qual foram construídas uma fábrica de cimento, uma enfermaria, escritórios para os engenheiros, uma pedreira e um armazém.
“Trata-se de um projeto importante, e existem muitas partes interessadas, muitas atividades simultâneas, muitos perigos que é necessário administrar a cada dia”, resume Christian Guimond, responsável pela construção da represa. “E isso para não mencionar os lobos e os ursos que aparecem por lá regularmente.”
Quatro trabalhadores já perderam a vida durante a construção, o que levou a Hydro-Québec, a empresa pública que detém o monopólio sobre a geração de eletricidade na província, a suspender as obras em 2017 a fim de revisar todas as práticas construtivas. Agora, afirma Guimond, os empregados estão muito mais conscientes dos perigos que enfrentam.
“Tivemos de desviar um rio, construindo um túnel de mais de um quilômetro; erguemos uma barragem que nos permitiu secar o leito do rio, e agora estamos no processo de construir a represa”, ele resume, contemplando o canteiro de obras, do alto da montanha.
A barragem, que começou a ser erguida recentemente, deve ter sua construção concluída em dezembro de 2019.
Com orçamento de mais de C$ 6,5 bilhões (R$ 18 bilhões), o projeto representa uma das maiores construções já realizadas no Canadá.
Benção
Para a região da costa norte, uma das mais isoladas e menos favorecidas da província de Quebec, as represas são uma benção. O projeto gerou empregos para as comunidades indígenas locais, ainda que muitos dos indígenas se opusessem ao desvio do curso do rio, que atravessa um de seus territórios tradicionais de caça.
“No começou eu não queria vir”, admite Gilbert Pietacho, que trabalha como capataz na obra e é membro da nação Mingan, parte do grupo innu. O pai dele, o chefe da tribo, é um dos mais fervorosos opositores do projeto. “Mas quando vi meu primeiro salário”, disse Pietacho, “mudei de opinião”.
“Tudo que se faz com a natureza me dói, me entristece um pouco”, disse Patricia Bacon, membro do grupo innu e empregada no refeitório do canteiro de obras Mista; ela aceitou o emprego a fim de guardar dinheiro para seu plano de fazer um curso superior.
“Mas as coisas mudam, e agora devemos ter eletricidade em todas as casas”, ela diz.
Além das populações autóctones, organizações ecológicas também se opõem ferozmente ao projeto. O Greenpeace, por exemplo, criticou a obsessão de Quebec quanto a grandes represas, que segundo a ONG “continuam a ser uma forma de produzir eletricidade muito daninha para o meio ambiente”.
O ouro azul de Quebec
A expectativa é de que, em 2021, as quatro centrais de geração de eletricidade espalhadas ao longo de 150 quilômetros do rio atinjam potência combinada de 1.550 megawatts, ante os 1.650 MW gerados pelo EPR de Flamanville, o último reator nuclear em operação na França.
Quebec optou por priorizar a energia hidrelétrica já na década de 1970. As grandes represas no norte da província propiciam 90% da energia consumida nela.
Eleito no começo de outubro, François Legault, o novo primeiro-ministro provincial de Quebec, prometeu construir novas represas depois que o projeto La Romaine estiver concluído, para exportar mais energia hidrelétrica, o que em sua opinião seria “a maior contribuição que Quebec poderia fazer para ajudar nosso planeta”.
Em visita à região em que estão sendo construídas as represas de La Romaine, Pierre-Olivier Pineau, especialista em energia da Universidade HEC de Montreal, duvida que seja importante para Quebec construir novas represas, já que a província no momento gera mais energia do consome.
“Isso posto, na região nordeste dos Estados Unidos existe um grande desejo de reduzir as emissões de carbono associadas à produção de eletricidade, na região da Nova Inglaterra ou no estado de Nova York, e isso poderia representar uma verdadeira oportunidade para Quebec; La Romaine poderia servir como essa fonte de energia renovável”, ele admite.
Resta obter as autorizações e o financiamento necessários para construir linhas elétricas de alta tensão ligando a província aos Estados Unidos. Justin Trudeau, o primeiro-ministro canadense, ofereceu ajuda do governo federal a Legault, para isso.
Porque enquanto as grades elétricas de ambos os países não estiverem conectadas, o ouro azul de Quebec continuará a ser um tesouro inacessível.